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Artigo

PACIFICAÇÃO DE FAVELAS - DO OUTRO LADO DO MORRO

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FONTE

Marcelo Porrua* 

Muitos de nós que temos televisão, acessamos internet, lemos jornal ou ao menos conversamos com vizinhos ou amigos, estamos constantemente ouvindo falar do “fenômeno da pacificação” dos morros no Rio de Janeiro. A mídia tem trabalhado incansavelmente na ampla cobertura do passo a passo de tal evento; e, na cola dos espaços televisivos, autoridades, artistas, oportunistas de toda sorte e também alguns populares tem se manifestado a respeito dessas ações, afinal parece que o mundo respira aliviado com tamanha ação do Estado, que finalmente vai acabar com a marginalidade nos morros do Rio de Janeiro. Será?

Orgulhoso, o Secretário de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro manifesta seu contentamento com o aparato humano e tecnológico utilizado pela “inteligência” das polícias durante a operação; alguns artistas exclamam, aliviados e com um discurso “politicamente correto” que de agora em diante além de passar pelos morros, sentem-se impelidos a irem até lá tomarem um sorvete; cidadãos comuns dizem que está sendo “legal” a ação da polícia; moradores das comunidades “pacificadas” afirmam que de agora em diante suas crianças poderão brincar pelas ruas de forma despreocupada, pois a paz será garantida pela presença das UPP Unidades de Polícia Pacificadora. Espero sinceramente que isso ocorra efetivamente.

Muito bem, todos temos direito a manifestarmos nossas expectativas; eu também vibro quando o bem vence o mal, quando os bandidos perdem e os mocinhos ganham, quando o oprimido é libertado e o opressor preso ou quando a justiça é feita, coisa rara de se ver ultimamente, principalmente do ponto de vista dos desvalidos. Sou cidadão comum e tenho em meu inconsciente os mesmos sonhos comuns das pessoas que desejam uma sociedade harmoniosa para viver.

Pois é, esse é o nosso desejo e é esse o primordial papel do Estado, tanto de direito – através de todas as leis que elabora, como de fato – através da execução dessas leis por meio de políticas públicas, a que todos temos direito de acesso. O Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, afirma que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...” É nesse momento, ao ler esse artigo da Constituição, que me pergunto: por onde andava o Estado durante todos esses anos ao permitir que algumas comunidades fossem ocupadas por um quarto poder (para os moradores da comunidade, o único poder) no momento de garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, com preconiza o mesmo artigo 5º da Constituição Federal? Ou há alguma passagem subliminar da Constituição que diz que isso tudo é garantido, menos às comunidades dos morros? Claro que não diz, mas é óbvio que isso ocorre de fato, ou alguém acredita que em lugares onde o Estado está presente, algum outro poder se estabelece?

Assim, não fujamos da questão: onde está o Estado para garantir o acesso dos cidadãos à moradia, aliás, onde estão as moradias desses cidadãos, a água e o gás, a energia elétrica, a coleta de lixo, as escolas, os postos de saúde? As moradias estão escondidas por entre labirintos, e elas não surgem do nada, são historicamente construídas à revelia do Estado que não atende às necessidades de seus cidadãos. A água e o gás são ofertados por “empresários” que exploram essa atividade de modo muito bem organizado, talvez melhor do que algumas estatais; a energia elétrica e as TVs a cabo são garantidas pelos “gatos” e “gatonets”, comandadas por outros ou pelos mesmos “empresários”; as escolas e postos de saúde são assumidos por ONGs (Organizações não governamentais) ou as pessoas devem descer desesperadamente as escadarias dos morros buscando as condições mínimas de subsistência quando suas vidas são ameaçadas; e em muitos casos não é pela ação dos traficantes não, é pela falta de assistência mínima à saúde mesmo. Assim, enquanto o poder público não age, os brasileiros vão dando seu jeito de sobreviver. E isso não é de hoje, creio que desde os tempos da vinda da família real portuguesa para o Brasil, quando os moradores da orla do Rio de Janeiro tiveram que desocupar suas casas e subir aos morros desordenadamente para dar lugar à corte portuguesa; de lá pra cá muita água rolou (junto com muita terra quando há desabamentos de toda sorte nos morros), mas o abandono do poder público, esse continua o mesmo.

Vemos, portanto, que as operações de retomada dos morros no Rio de Janeiro têm um outro lado, elas significam anos de silêncio e omissão do Estado frente a essas populações a quem quase tudo foi negado. É o próprio Estado brasileiro, no descumprimento de suas atribuições de garantir o acesso aos bens públicos a toda população indistintamente, que dá as brechas para que outras pessoas assumam esse poder junto à comunidade, e o instituam como talvez o único poder presente nessas localidades. Não sejamos demagogos, enfrentemos um pouco da realidade que se desencadeia à nossa frente. A retomada nunca foi e nunca será re-tomada, pois o Estado nunca esteve presente, será a primeira vez que o Estado sobe até alguns morros, será a primeira vez que nesses lugares haverá coleta de lixo, por exemplo. Você já imaginou sua vida sem coleta de lixo? Pois é, lá, as pessoas da comunidade têm o desejo de terem seu lixo recolhido. De onde estamos falando mesmo? Das comunidades “pacificadas” do Rio de Janeiro, para nossa ciência. E serão elas as únicas onde o Estado não atua?

Mas, outras perguntas não querem calar: será que somente agora as polícias têm efetivo e tecnologia para agirem com “inteligência”? Será que apenas agora que se descobriu que o exército pode estar à disposição de um Estado que deseja dar aos seus cidadãos o que lhes é de direito? Será que tudo isso tem se efetivado apenas por ocasião da Copa e das Olimpíadas que se aproximam, e assim garantir uma eficiente “maquiagem” dos morros, dando a impressão de fazerem parte dos reais interesses do Estado? Depois de tudo isso haverá “inteligência” atuando permanentemente ou as mesmas têm tempo e prazo de validade? Vejamos o que vai acontecer.

Estejamos vigilantes, e não nos esqueçamos de olhar para os lugares onde as emissoras de TV nem sempre fazem cobertura; não esqueçamos de ouvir por detrás do que não vem dito no discurso dos políticos, dos secretários de Estado e de autoridades de toda sorte, aprendamos a olhar o que nem sempre se apresenta diante dos olhos, mas que é percebido apenas pela perspicácia de quem aprende todo dia a olhar para o outro lado do morro. E se as ações da “inteligência” governamental tiverem prazo de validade, que a nossa não tenha.

 

*Professor de História da E.E. Nossa Senhora de Fátima - Araputanga/MT e acadêmico do Curso de Direito FCARP